quinta-feira, 26 de abril de 2012

IBGE OU QUEM INVENTA ÍNDIOS?

IBGE OU QUEM INVENTA ÍNDIOS?
Lúcia Helena Rangel – Antropóloga da PUC - SP e Assessora do CIMI
“Tendências demográficas: uma análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000” é uma publicação do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada em dezembro de 2005, que contém um detalhamento da maior importância a respeito do perfil da população indígena brasileira. Pela primeira vez no Brasil pode-se ter uma fonte confiável que reúne os dados de população, seu número, sua localização, seus deslocamentos, taxas de natalidade, mortalidade, educação, religião, nupcialidade, idade, sexo, formando um conjunto que dá visibilidade a uma população sempre esquecida nas estatísticas oficiais.
O dado que mais surpreendeu desde a divulgação do Censo Demográfico de 2000 foi o total da população indígena que passou de 294.131 pessoas recenseadas em 1991, para 734.127 pessoas em 2000. Esse dado foi obtido a partir da pergunta “Qual é a sua cor ou raça?”, cuja resposta oferecia as seguintes alternativas: branca, preta, amarela, parda e indígena. Os indivíduos pesquisados escolheram a alternativa de resposta sem interferência do pesquisador do IBGE; portanto, a soma das respostas compõe o total de população autodeclarada indígena.O outro dado que surpreendeu foi o da localização da população, sendo 47.8% domiciliada em zona rural e 52.2% em zona urbana.
Desde a primeira divulgação desses dados, em 2000, eles são colocados em dúvida dado que a categoria indígena não é considerada cor, nem raça, tanto pelos antropólogos estudiosos da questão indígena, quanto pela FUNAI. Para estes que contestam a realidade dos dados, uma parte significativa dessa população autodeclarada indígena seria composta por “índios genéricos”, isto é, pessoas que possuem ascendência indígena de uma avó ou avô, pai ou mãe, estando já há algumas gerações ou mesmo alguns anos distanciadas de suas comunidades de origem, sem vínculos étnicos.Como seriam as respostas se a pergunta fosse formulada perguntando sobre a etnia do indivíduo pesquisado? Quem no Brasil sabe o que é etnia; quanto essa palavra está incorporada no vocabulário comum? Talvez para o próximo censo o IBGE resolva aprimorar seu instrumento de pesquisa e aprofunde questões referentes a povo, língua e outros quesitos para aqueles que se declararem indígenas. Dessa forma poderíamos, talvez, separar o joio do trigo e saber quem é “índio puro”, “índio misturado” e “índio falsificado”.
O fato é que os dados do IBGE revelam alguns aspectos perversos da política indigenista brasileira, que se mantém praticamente a mesma em todo o período republicano. Formulada com o objetivo de integrar o índio à comunhão nacional, essa política considera índio aqueles indivíduos e comunidades de ascendência pré-colombiana, que vivem em terras indígenas, mesmo que a Constituição Federal e as Convenções Internacionais legitimem a autodeclaração. O antigo SPI demarcou terras sem levar em consideração o aumento populacional, ao contrário, levou apenas em consideração a diminuição da população que se tornaria integrada “de livre e espontânea vontade”, a partir das práticas indigenistas realizadas nas aldeias.

A graduação de povo isolado, em contato intermitente, contato permanente, integrado e extinto foi sempre a base do raciocínio para efetuar a demarcação de terras. Se a população cresceu e inchou as aldeias, tornando-as espaços de muita tensão entre grupos locais, essa seria uma das razões que explicaria a migração para as cidades ou mesmos para outros espaços rurais ou indígenas. Então aqueles que saem falta de terra perderiam os direitos indígenas. É a tal história: “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. Os Kaiwoá/Guarani do Mato Grosso do Sul conhecem bem esse ditado.
Os dados mostram, por exemplo, que as grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro são receptoras de população indígena em quantidades significativas, cuja procedência é em grande parte da Região Nordeste. Essa região era considerada praticamente despovoada de população indígena até a década de 1970; nela foram extintos inúmeros povos nativos. Dessa forma não era preciso demarcar terras e nem considerar o crescimento da população, afinal de contas a demografia indígena mostrava que o controle tradicional do número de filhos indicava uma constância populacional, ou um baixo crescimento.

O que se vê hoje na região é o contrário de tudo isso: as comunidades decidem assumir sua referência cultural, expõem suas histórias particulares revelando trajetórias de deslocamentos, junções de povos, acomodações territoriais e movimentos migratórios intensos. Contingentes de diversos povos do nordeste migraram para o Estado de São Paulo desde 1950 a procura de trabalho e melhores condições de vida. Alguns foram juntar-se aos povos que viviam em pequenas áreas no interior do Estado (as mesmas até hoje), mas uma grande parte ficou na capital, trabalhando na construção civil. Foi a construção do estádio de futebol do Morumbi e a urbanização do próprio bairro que motivou a formação de grandes favelas nessa área nobre da cidade, sendo uma delas a Favela do Real Parque onde vivem quase dois mil Pankararu.
O senhor Camilo Pankararu, hoje um ancião, contou que foi para São Paulo numa frente de trabalho como lenhador, depois trabalhou como pedreiro e outros tantos serviços urbanos ao longo de sua vida na capital paulista; numa de suas declarações afirmou: “naquele tempo, a gente não dizia que era índio porque perdia o emprego, foi assim durante muito tempo, só agora é que a gente pode dizer que é índio e pedir para a FUNAI que cuide dos nossos netos”. Os Pankararu nunca perderam os vínculos com suas comunidades de origem e nunca esqueceram quem eram, apenas ocultaram sua referência cultural por necessidade e para fugir do racismo do qual sempre foram vítimas.
O estudo do IBGE revela a base estatística dessa e de outras tantas histórias que dão sustentação a autodeclaração, indicando apenas que hoje em dia não é mais preciso esconder a condição de indígena. Em todas as regiões do Brasil a população indígena cresceu em função de três possibilidades: a) crescimento vegetativo, isto é, a população aumenta devido ao maior número de nascimentos do que de mortes; b) imigração internacional originária de países vizinhos tais como Bolívia, Equador, Paraguai e Peru, onde há altos contingentes de população indígena; c) aumento da proporção de indígenas urbanizados que optaram pela categoria indígena no Censo Demográfico 2000.

Essas três possibilidades não são excludentes, mas, segundo o estudo a terceira possibilidade seria a que mais pesaria no aumento tão significativo da população indígena brasileira. Assim, estariam incluídas nos 52.2% de população indígena vivendo em zonas urbanas, tanto aquelas pessoas e comunidades com pertencimento a povos específicos, quanto aquelas que se classificaram genericamente como indígenas. Possivelmente há uma torcida, principalmente por parte dos setores oficiais, para que esses dados revelem uma maioria de “índios genéricos”, sem vínculos comunitários para que não seja preciso modificar a pauta da política indigenista para atender as demandas por terras e por atendimento à população indígena urbanizada.
De fato, isso dá o que pensar. Quantos brasileiros possuem uma avó “pega a laço”? O que aconteceria com a população amazônica se passassem a dar maior importância a sua avó indígena do que a seu avô cearense, paraibano, maranhense…? Então a população brasileira seria composta por maioria indígena! Será esse o temor oficial, que haveria de demarcar terras indígenas em quantidades inusitadas? Ou seria o temor de banalizar a categoria “índio”, tão bem guardada nos escaninhos acadêmicos que modelaram apenas um tipo de índio aceito oficialmente?

Talvez seja por isso que o Presidente da FUNAI declarou recentemente que deve haver um limite para as demarcações. Mas o próprio estudo do IBGE chama a atenção para o dever do estado brasileiro de demarcar as terras Indígenas. Já que o Estado não pode fugir a esse dever constitucional então passa, através da FUNAI, a questionar a legitimidade da autodeclaração e impõe barreiras à luta por reconhecimento de inúmeras comunidades indígenas.

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