domingo, 13 de maio de 2012

HISTÓRIAS DA PRESERVAÇÃO E AS COMUNIDADES RIBEIRINHAS DO MÉDIO SOLIMÕES - PARTE I

Prelazia de Tefé
Estudos Históricos
10 a 11.07.2010
Centro de Pastoral Irmão Falco – Tefé – AM
2º Dia
5ª Palestra: História da Preservação e as Comunidades Ribeirinhas
Palestrante: Francisco Aginaldo Queiroz Silva[1]
Parte I – Conservação e Comunidade[2]
A escassez de espécies de peixes nos lagos e rios da Amazônia, especialmente os de valor comercial, levou a adoção em milhares de comunidades ribeirinhas e indígenas de um modelo de “preservação de lagos”, idealizado no âmbito da Prelazia de Tefé, no Médio Rio Solimões e Afluentes, no Estado do Amazonas, que consiste na delimitação de lagos controlados pelas comunidades, classificados como “santuário”, para a procriação; “manutenção”, usados para a pesca de subsistência e “livres”, abertos para a pesca comercial.
Essa iniciativa também se fez presente em outras áreas da Amazônia Brasileira, especialmente no Médio e Baixo Rio Amazonas, no Estado do Amazonas e Pará, respectivamente e, possuem as características baseada nas ações coletivas e comunitárias, que deram origem a regulamentação e acesso legal aos recursos pesqueiros e naturais, presentes especialmente na várzea, mas sempre destacando o uso coletivo pelas famílias ribeirinhas.
A mediação exercida pela Igreja Católica – Prelazia de Tefé, através de seus missionários e agentes de pastora, entre estes, um enorme contingente humano de leigos/as, estabeleceu uma ruptura com o Estado e a quebra do sistema tradicional de usufruto dos recursos, que são e passam a ser entendidos como finitos, especialmente para os ribeirinhos e indígenas.
Houve o estímulo de novas regras de uso e acesso a estes recursos, especialmente, o pescado. No fundo, e pouco se fala nisso, a luta foi e é pelo direito a terra e água. Quem controla esses bens, tem o direito aos bens naturais. Aqui está a base do movimento de preservação de lagos, encabeçado por ribeirinhos, extrativistas e indígenas na Prelazia de Tefé, Estado do Amazonas.
Dessa lógica, foram criadas várias frentes de ação política, partindo do “embate”[3] e luta contra os pescadores, denominados friamente de “invasores”[4], até a discussão de leis, formação de bases, articulação em redes, presença em instâncias governamentais paritárias ou não.
Dessas várias frentes, surgiram os grupos sociais em diversos lugares e regiões, que mais tarde se articularam em redes macro regionais, infiltraram-se em comitês, conselhos e comissões em âmbito estadual e federal, construíram novos mecanismos de disputa política, através do “quarto poder”[5] (sociedade – povo), novos quadros foram formados nas bases, surgiam os AAV – Agentes Ambientais Voluntários[6] e as reformulações de leis deram uma nova dinâmica a luta.
Também os assessores passaram a ter uma nova visão de ação, a de inserção e reivindicação de políticas públicas e a necessidade de sensibilizar o povo para a tomada de poder gradativamente, ampliando seu raio de atuação.
A base de acesso dos recursos naturais passou da idéia da preservação dos lagos para a unidade de conservação de uso sustentável e terras indígenas, que garante de forma legal o uso da terra e o manejo desses recursos à luz da orientação técnica e legal. A diversidade dos arranjos institucionais e de recursos manejados é uma combinação de fatores, aliadas a uma estratégia de desenvolvimento local comunitário.
No fundo também, o movimento de preservação deu várias guinadas, mas nunca perdeu o foco principal que é a dignidade da pessoa humana, aliada a uma melhor qualidade de vida, baseada na garantia da terra e da água. E para isso, os avanços foram imensuráveis e muitas lideranças de base não conseguem ter hoje a compreensão de tantas mudanças e conquistas.
No entanto, sabem que precisam avançar nessas conquistas, como por exemplo, a decretação e implementação das unidades de conservação, através das políticas públicas, a regulamentação das terras de várzeas presentes em áreas de interstícios para uso coletivo das comunidades, a homologação de dezenas de terras indígenas que estão paradas no Ministério da Justiça, a continuidade da formação das bases, do fortalecimento das organizações sociais e de sua aliança em redes.
Nessa lógica, o movimento de preservação de lagos na região do Médio Rio Solimões e Afluentes é um exemplo das dinâmicas e processos relacionados ao manejo comunitário dos recursos naturais.
É a firme proposição das regras de acesso e uso dos lagos provocada pela percepção da escassez do peixe, fixou metas, passando do “embate” a proposição de novas políticas, leis e na concepção de grupos sociais sólidos e representativos de micro-regiões, presentes hoje em unidades de conservação e terras indígenas, e aliados a parceiros em redes, tendo sempre como referência a comunidade, influência da Igreja Católica na formação de suas bases e lideranças, provocada pelo conceito da Teologia da Libertação, embora hoje, alguns que fazem parte dessa discussão negam aliança a essa última indicação.
Centenas de comunidades estão envolvidas em graus diferenciados com o movimento de preservação de lagos e, conquista e acesso a terra e água, apoiadas por uma dezena de instituições de base e ambientalistas e pela Igreja Católica, sendo que esta última continua a chegar nos lugares mais longínquos e consegue uma inserção em uma camada da população ribeirinha e indígena sem proposições a serem destacadas, a não ser, a ação de evangelização e valorização da pessoa humana no Médio Rio Solimões e Afluentes.
A ação evangelizadora da Igreja do Brasil, que a partir da Teologia da Libertação e demais orientações do Concílio Vaticano II (1965), optou pela constituição e implementação de ações voltadas para o fortalecimento das famílias a partir dos seus pequenos espaços, sendo que esta proposta passou a ser as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs.
Na Prelazia de Tefé essa ação evangelizadora encontrou uma intensa aceitação do clero e dos leigos/as, que se dispuseram a organizar as famílias ribeirinhas e indígenas nas barrancas do Médio Rio Solimões e Afluentes, com especial destaque para as calhas do Rio Japurá, Rio Juruá, Rio Tefé e Rio Jutaí.
Essa proposta de ação tem pautado a promoção humana na sua integridade, levando ao homem ribeirinho e indígena conhecimentos que possibilitaram o seu desenvolvimento pessoal e social.
O Movimento de Educação de Base – MEB, organismo da Igreja Católica teve um papel importantíssimo nessa região, pois se dispôs a organizar as famílias, capacitar as lideranças e implementar a educação formal direcionada para jovens e adultos. Essa ação se concretizou em uma forte organização comunitária; em um número de pessoas envolvidas em atividades sociais e políticas; em uma forte evangelização e presença da Igreja Católica nas comunidades ribeirinhas e indígenas; nas reivindicações de políticas públicas sociais, cidadania e democracia e no que se ver evidente nos dias de hoje: o reconhecimento de um povo chamado ribeirinho e indígena, presente em suas comunidades, primando pela partilha e pela solidariedade.
Os ribeirinhos e indígenas da Região de Tefé, que fica no Médio Rio Solimões e Afluentes tem sua luta alicerçada na vida, no sentido de manter-se fixado na terra, preservando esta para a vida, para gerar seu sustento diário.
Lutar por melhoria na qualidade de vida do povo inclui também uma outra vertente, a luta pela água, pelo peixe de cada dia, a continuidade do fortalecimento comunitário e no estabelecimento de novas relações sociais.
A Região de Tefé possui inúmeras comunidades e setores, o que facilita uma ação planejada de formação, mas ao mesmo tempo falta um corpo técnico e melhor qualificação para atender as demandas das comunidades.
As ações de formação são difíceis, por causa das distâncias e pelos poucos recursos financeiros. Vale ressaltar que a formação das lideranças de base é de suma importância para o coletivo, onde estas cada vez amadurecem e adquirem novos conhecimentos e formas de relacionamento em parceria e crescem coletivamente em suas ações e proposições.
O sonho de um trabalho comum assumido por todos e de melhores condições de vida para as famílias se torna cada dia mais concreto a partir da lógica de quem vem atuando e lutando para modificar a situação vigente.
Os ribeirinhos e indígenas representam a maioria da população rural do Estado do Amazonas e ocupam as terras de várzeas e terra firme do Rio Solimões e Afluentes. Estão organizados em comunidades, que intermediam as práticas de convivência social e através das suas lideranças comunitárias estabelecem os vínculos com as estruturas formais dos municípios, Estado e União e demais instituições não governamentais.
Fica o desafio de se manter viva uma cultura moldada pela solidariedade e construída com a participação do coletivo, o que Jean Vanier (1982) diz: “a comunidade é o lugar em que cada pessoa se sente livre para ser ela mesma, expressar-se e dizer com toda confiança o que vive e o que pensa”.
E entendemos que seja também: o lugar de construção e exercício da democracia e da cidadania.



[1] Educador Popular, com 25 anos de atuação em organização social, políticas públicas e conservação ambiental na Amazônia Brasileira. Graduado em Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA, Membro do Grupo de Casais de Tefé – GRUCATE. Membro do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Amazônico – IPDA. Membro do Instituto Encontro das Águas da Amazônia – IEAM. Coordenador Executivo e Colaborador do Grupo de Trabalho Amazônico – Rede GTA no Estado do Amazonas. Colaborou nas ações de organização comunitária, formativas, radiofônicos e políticas socioambientais da Prelazia de Tefé por 21 anos na Pastoral da Juventude da Paróquia de Santa Teresa e Prelazia, Movimento de Educação de Base – MEB/Departamento Tefé e Conselho Indigenista Missionário – CIMI/Prelazia de Tefé.
[2] Texto apresentado no I Simpósio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC no Amazonas – Agosto de 2006, na III Feira Internacional da Amazônia – Setembro de 2006, em Manaus – AM e publicado no Livro Campanha da Fraternidade 2007 – Amazônia – Cartilha para Jovens. CNBB – Igreja Católica. 2007.
[3] No Estado do Acre, os seringueiros liderados por Chico Mendes, fundador do CNS – Conselho Nacional dos Seringueiros lutavam contra os madeireiros e pecuaristas para manter a floresta em pé, especialmente as seringueiras nativas. Essa luta chamava-se “Empate”. Na Prelazia de Tefé, os ribeirinhos, liderados por Irmão Falco, lutavam para garantir o “peixe nosso de cada dia” contra os grandes geleiros advindos do Estado do Pará e da Capital do Estado do Amazonas – Manaus, e chamavam essa ação de “Embate”.
[4] No início da luta de preservação de lagos na Prelazia de Tefé, por volta da década de 60 até o ano de 1998, ira considerado invasores os grandes geleiros advindos de outras regiões do Estado do Amazonas e do Estado do Pará. Após a “Grande Invasão dos Lagos da Ilha do Ice”, liderada pelos pescadores da própria Ilha do Icé, do Bairro do Abial e de outros bairros da Cidade de Tefé, essa nomenclatura foi estendida para todos os tipos de invasões, seja de lagos ou da floresta.
[5] Consideramos para efeito de explicação que o primeiro poder é o Estado (União, Estado e Município), o segundo poder é o Judiciário, o terceiro poder é o Legislativo e o quarto poder é a sociedade civil organizada e o povo em geral. Atualmente acrescentou nos debates formativos o empresariado e as igrejas, estendendo a numeração para seis poderes.
[6] A figura do AAV – Agente Ambiental Voluntário criado por lei e transformado em um instrumento político ambiental foi uma proposição discutida e formulada pelo movimento de preservação de lagos da Prelazia de Tefé e aprimorado em debates promovidos pelo Provarzea/IBAMA/MMA na década de 1990.

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